quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O Papa emérito responde também

Bento XVI, Joseph Ratzinger – resposta ao matemático Professor Doutor Odifreddi, através das páginas de “La Repubblica”, diário italiano, dia 23 deste, com data de 30 de agosto de 2013.
Bento&Francisco
Sr. Prof. Odifreddi,
Quero agradecer-lhe por haver procurado até ao pormenor confrontar-se com meu livro e, assim, com a minha fé. Em parte, era isto mesmo que eu pretendia no meu discurso à Cúria Romana por ocasião do Natal de 2009. Devo também agradecer-lhe o modo leal com que tratou meu texto, procurando, om sinceridade, fazer-lhe justiça.
Meu juízo, porém, a respeito do seu livro é, antes, contrastante. Li algumas partes com prazer e proveito. Em outras partes, no entanto, me espantei com certa agressividade e precipitação nos argumentos (…).
Várias vezes, seus argumentos me fizeram notar que a teologia seria uma ciência ficção. Sendo assim, eu admiro que, apesar disto, tenha considerando meu livro digno de ser discutido tão pormenorizadamente. Permita-me propor, a respeito do mérito destas questões, quatro pontos:
1. É correto afirmar que “ciência” no sentido mais estrito do termo, é somente a matemática, embora tenha percebido que também merecem ser tidas como tal a aritmética e a geometria. Em todas as matérias específicas a cientificidade tem a sua própria forma, segundo a particularidade do seu objeto. O essencial é que seja aplicado um método verificável, o arbítrio seja excluído e se garanta a racionalidade nas diversas modalidades respectivas.
2. O Sr. Deveria, pelo menos, pelo menos, reconhecer que, no âmbito histórico e no do pensamento filosófico, a teologia tem produzido resultados duradouros.
3. Uma função importante da teologia é a de manter a religião ligada à razão e a razão à religião. Ambas funções são de essencial importância para a humanidade. No meu diálogo com Habermas mostrei que existem patologias da religião e – não menos perigosas – patologias da razão. Ambas necessitam uma da outra, e mantê-las conexas é um importante papel da teologia.
4 Faz-se “ciência fantástica” também no âmbito de muitas ciências. O que o Sr. expõe sobre as teorias a respeito do começo e do fim do mundo em Heisemberg, Schrödinger e outros, eu chamaria como “ciência ficção” no bom sentido: são visões e antecipações para chegar a um verdadeiro conhecimento. Mas são, também, apenas imaginações com as quais procuramos nos aproximar da realidade. Existe, de resto “ciência fantástica” em grande estilo mesmo no interior da teoria da evolução. O “gens egoísta” de Richard Dawkins é um exemplo clássico desta “ciência fantástica”. Cito: O surgimento dos vertebrados quadrúpedes (…) tem, em sua origem, o fato que um peixe primitivo ‘escolheu’ andar e explorar a terra. Mas, na terra firme, era incapaz de deslocar-se a não ser saltando desajeitadamente e criando, assim, uma modificação de comportamento, pressão seletiva, graças à qual se teriam desenvolvido os membros robustos dos quadrúpedes. Entre os descendentes deste audaz explorador, deste Magalhães da evolução, alguns podem correr a velocidades superiores a 70 quilômetros por hora” (citado segundo a edição italiana de “Il caso e la necessità”, Milano 2001, pagg. 117 e sgg.).
Em toda a temática discutida até agora tem havido um diálogo sério, pelo que eu – como já insisti – agradeço. As coisas ficam diferentes no capítulo sobre o sacerdócio e a moral católica, e ainda mais nos capítulos sobre Jesus. No que se refere ao que o Sr. diz a respeito do abuso moral de menores por parte de sacerdotes, posso – como o Sr. sabe – tocar no assunto apenas com profunda tristeza. Nunca procurei mascarar esta realidade. Que o poder do mal penetre até este ponto no mundo interior da fé é, para nós, um sofrimento que, de uma parte, devemos suportar, e, de outra, devemos, ao mesmo tempo, fazer tudo o que for possível, para que coisas assim não se repitam. Nem é motio de conforto saber que, segundo as pesquisas sociológicas, o percentual de padres réus deste crime não é mais elevado, no presente, do que em outras categorias profissionais semelhantes. Em todo caso, não se deve apresentar ostensivamente estes desvios como se tratasse de algo sórdido específico do catolicismo.
Se não é lícito calar sobre os males na Igreja, não se deve, contudo, calar sobre a grande trilha luminosa de bondade e pureza, que a fé cristã tem traçado ao longo dos séculos. É preciso recordar as grandes figuras que a fé tem gerado – de Bento de Núrsia e sua irmã, Escolástica, a Francisco e Clara de Assis, Teresa de Ávila e João da Cruz e aos grandes santos da caridade, coo Francisco de Paulo e Camilo de Lélis até Teresa de Calcutá, bem como outras grandes e nobres figuras na cidade de Turim no século dezenove. É também verdade que a fé impulsiona muitas pessoas ao amor desinteressado, ao serviço em favor dos demais, à sinceridade e à justiça.
O que o Sr diz sobre a figura de Jesus não é digno de seu nível científico. Se o Sr. põe em questão como se, a respeito de Jesus, nada se soubesse e d’Ele, como figura histórica, nada fosse confiável, então somente posso convidá-lo decisivamente a tornar-se um pouco mais competente do ponto de vista histórico.
Recomendo-lhe, assim, sobretudo os quatro volumes que Martin Hengel – exegeta da faculdade protestante de Tübingen – publicou com Maria Schwemer: é um exemplo excelente de precisão e amplíssima informação histórica. Diante disto. O que o Sr. diz de Jesus é um modo de falar incorreto e que não deveria ser repetido. Que, no campo exegético, se tenham escrito muitas coisas de pouca seriedade, é, porém, um fato incontestável. O Seminário americano sobre Jesus, que o Sr. cita nas páginas 150 ss., apenas confirma, somente uma vez, o que Albert Schweitzer tinha observado a respeito da Pesquisa sobre a vida de Jesus, isto é, que o assim dito “Jesus histórico” é, comumente, um reflexo das ideias dos autores. Estas formas mal sucedidas do trabalho histórico, não comprometem no entanto, a importância da pesquisa histórica séria, que nos tem levado a conhecimentos verdadeiros e seguros sobre o anúncio e a figura de Jesus.
(…) Além disto devo rejeitar com força sua afirmação (p. 126), segundo a qual eu teria apresentado a exegese histórico-crítica como um instrumento do Anticristo. Tratando do relato das tentações de Jesus, apenas retomei a tese de Soloviev, segundo a qual a exegese histórico-crítica pode ser usada também pelo Anticristo – o que é um fato incontestável. Porém, ao mesmo tempo, sempre – e em particular nas premissas do primeiro volume do meu livro sobre Jesus de Nazaré – esclareci com clareza que a exegese histórico-crítica é necessária para uma fé que não propõe mitos com imagens históricas, mas reclama uma verdadeira historicidade e, portanto, deve apresentar a realidade histórica das suas afirmações também de modo científico. Assim sendo, não é correto que o Sr. afirme que eu só estaria interessado em meta-história: pelo contrário, todos os meus esforços têm o objetivo de demonstrar que o Jesus descrito nos Evangelhos é também o real Jesus histórico. Que se trata de histórica realmente acontecida.
Com o 19º capítulo do seu livro, voltamos aos aspectos positivos de seu diálogo com o meu pensamento (…). Se bem que sua interpretação de Jo 1,1 esteja muito distante “Natureza”, resta uma pergunta: que coisa seria a Natureza? Em nenhum lugar o Sr. a define e, então, ela parece uma divindade irracional, que nada explica. Gostaria, portanto, de fazer notar que, na sua religião da matemática, três temas fundamentais da existência humana permanecem não considerados: a liberdade, o amor e o mal. Admiro-me que o Sr., com um aceno, elimine a liberdade, que, contudo, tem sido o valor mais importante da época moderna. O amor no seu livro, não comparece e também não há nenhuma informação sobre o mal. Seja oque for que a neurobiologia diga ou não diga sobre a liberdade, no drama real de nossa história, a liberdade é presente como realidade determinante, e deve ser levada em consideração. Mas sua religião matemática não dá nenhuma informação sobre o mal. Uma religião que descura estas questões essenciais permanece vazia.
Professor, minha crítica a seu livro é, em parte, dura. Mas faz parte do diálogo a franqueza. Somente assim pode crescer o conhecimento. O Sr. foi muito franco e, assim, aceitará que eu também o seja. Em toda caso, porém, valorizo muito positivamente o fato de que o Sr. ao confrontar-se como minha “Introdução ao Cristianismo”, tenha procurado um diálogo tão aberto com a fé que anima a Igreja Católica, e que, apesar de todos os contrastes, nos pontos centrais, não faltem de todo convergências.
Com saudações cordiais votos de bom trabalho.